Estava outra vez sem tabaco. Irra, já era tempo de inventarem maços que se comprassem a si mesmos, estou farto de ter que ir à tabacaria. Mas isto era apenas um pensamento, a quem conheço o hábito de ir e voltar rápido como o mergulho de um falcão peregrino. Lá peguei na carteira, abri a dita, enfiei lá para dentro os providenciais dois euros e cinquenta e cinco (porra, por este andar um gajo daqui a nada gasta o ordenado todo na merda dos cigarros), e dirigi-me à porta. Tive que suportar o vento gélido de Janeiro, o idiota do arrumador que me vem sempre cravar “um cigarrito, pá” e muitas outras coisas que não vou aqui descrever porque não interessam para o caso.
Mais à frente, vitória. A Tabacaria Avenida, ali mesmo diante de mim, parecia-me naquele momento o mesmo que para um católico pareceria ver Jesus a fumar um charro. Quer dizer, não seria bem isso, mas o leitor está a perceber a ideia. Enfim, estou a tergiversar, quando o que interessa nesta estória é o que aconteceu depois de o tabaqueiro me entregar um maço novíssimo em folha de Dunhill em troca dos tais providenciais dois euros e cinquenta e cinco que eu trazia na carteira. E o que é aconteceu assim tão extraordinário que justifique todo este desperdício da bela Língua que Camões, Eça e Pessoa aprimoraram? Apercebi-me que já não tinha tinta em nenhuma da multitude de canetas que repousavam pacificamente na minha secretária lá em casa. Então dardejei rapidamente os globos oculares pela prateleira da já mencionada Tabacaria Avenida, até que escolhi uma pena (metafórica, convém realçar) do meu agrado. Felizmente descobri no bolso de trás das calças uma amarrotada nota de cinco euros, heróica sobrevivente de uma batalha contra detergentes e centrifugações (mental note to self: passar a procurar notas de cinco euros no bolso das calças antes de as mandar para a D. Guida) que me permitiria afordar tal encargo. Lá comprei a caneta, uma modesta BIC por sinal, mas não seriam modestas as palavras inflamadas que ela iria imortalizar no meu bloco de notas, pensei. Voltei para casa num ápice (o tempo voa com um cigarro na mão!) e cerimoniosamente abri o maço, retirei com todo o cuidado um cigarro, ansiosamente o acendi e, então sim, peguei na caneta e comecei a escrever.
Essa noite foi mágica. Verti para o papel toda a emoção, todo o mundo que me trespassava e ultrapassava. Às sete da manhã, quando terminei e revi o que escrevera, estava convencido. Era a minha obra-prima. Trezentas e setenta e duas páginas em branco, sem contar com o prefácio. Estava tão orgulhoso de mim mesmo que nem me ocorreu a influência que aquela singela esferográfica BIC tivera no resultado final. Ah, e podia aqui discorrer longamente sobre o orgulho, esse mortal pecado que impele os homens às mais inauditas acções, reacções e altercações, mas não o farei, quanto mais por respeito ao leitor que espera ansiosamente uma conclusão concisa, quiçá moralista, desta modesta short-story.
Continuando então, não foi senão no dia seguinte, depois de umas quantas horas de sono, preenchidas com sonhos de edições, livros e rios de dinheiro, que me perguntei até que ponto a qualidade dos meus escritos teria a ver com aquela caneta de aspecto desinteressado, plástico azul e transparente, que havia comprado na véspera a preço de barganha. Peguei nela, ergui-a à altura do olho, e apercebi-me de que havia realmente algo de estranho, uma aura mística, talvez (daquelas que vêm na revista Xis do Público, ensanduichada entre um artigo sobre os poderes da mente(capta, diria eu) e outro sobre crianças arco-iris, índigo e o raio que as parta). Decidi arriscar, explorar até ao âmago aquele mistério, e desmontei a caneta. Qual não é o meu espanto quando vejo saltar de lá, sem mais nem menos, um gambozino! Não me atrevo a tentar descrevê-lo, nem através de palavras ou de metáforas, pois a criatura escapava aos mais arrojados padrões de definição, tal a sua estranheza. Arrisco-me mesmo a dizer que a sua morfologia era não euclidiana (o que se verifica nos desenhos de alguns dos nossos arquitectos que chumbaram a Geometria). Exclamei então:
- Eh lá, mas que raio é isto!? Um gambozino? Não sabia que vocês existiam!
Ele olhou para mim (estou convencido que aquilo que ele apontou para mim eram os olhos) e respondeu:
- Já viste a coincidência! Eu também não! E tu és o quê?
Quando o ouvi falar na minha língua, com apenas um ligeiro sotaque do Burkina Faso, toda a estupefacção que sentia deu lugar à curiosidade. Acendi outro cigarro, depois de cavalheirescamente lhe oferecer um (não fumava), e passámos o resto da tarde a conversar, sobre tudo e sobre nada. Mas o melhor vim a descobri-lo no dia seguinte, quando tomávamos o pequeno-almoço: ele era editor e queria publicar o meu livro! Aceitei de imediato, e após uns meses tornou-se um best-seller. Se há alguma conclusão moral a retirar desta estória, leitor, desconheço-a por completo, mas é realmente capaz de ter a sua comicidade. São, afinal, coisas que acontecem.
3 comentários:
Eu também não sabia que existiam gambozinos. Às tantas já nem se sabe o que é ficção.
Aqui jaz um comment de merda. Hail \m/
Sim senhor. estás lá. as tuas histórias começam com umas reflexões fixes, dps partem para umas ideias a dar para o "pseudo", mas inesperavelmente, cais num cena qq totalmente imaginária, mas com uma naturalidade e uma simplicidade muito muito boas. Estou a gostar imenso destas histórias! Continua!
É de notar que esta história está desactualizada porque um maço de Dunhill custa agora 2.90 €. Não interessa, talvez daqui a séculos quando descobrirem os manuscritos desta história (lol) seja um importante documento histórico por isso mesmo. Espero para ver...
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